O bolo



Estou de facto feliz em poder ir daqui para fora.
A cada dia que passa, redobra-se, triplica-se, quadriplica-se essa felicidade.
Está quase, quase…
Se de facto a felicidade nos é servida como um bolo, à fatia e devagar - porque o bolo tem que dar para a vida toda - desta vez puseram uma fatia enorme no meu prato…
E eu, que não comia bolo há tanto tempo!
E eis-me aqui sentadinha, a apreciar a minha guloseima… Tal qual pirralha pequena, esfaimada, mas com um sorriso nos lábios.
No dia de hoje digo: Estou feliz.
Acordei.
E acordei estupidamente feliz.
Por tudo, e por nada.
Por tudo: pelas condições, pelos valores, pelos ambientes, pelas fragrâncias, pelas pessoas, pelo tratamento, pelo espaço… acima de tudo pela oportunidade, pelo reconhecimento.
Estes anos de absoluto marasmo e inércia toldaram-me a visão e o pensamento.
Fizeram-me olvidar tudo ao que sempre estive habituada e para o que fui ensinada, tudo o que aprendi em prol de um suposto benefício maior que nunca me deixaram alcançar.
Dizem que os valores ficam…Nunca se esquecem, não obstante os momentos em que temos que viver noutras realidades e aos tratamentos a que estamos sujeitos.
E eu, não esqueci os valores, de facto.
Mas fui exposta a uma terapia de choque que me varreu parte da minha memória.
E eu esqueci-me … Pura e simplesmente…Esqueci-me…
E esqueci-.me justamente do essencial: Que sou capaz!
Momentos houve em eu me esqueci de ser uma pessoa. Quem fui eu?
(Porque fiquei demasiadamente ocupada a olhar para outros lados que no momento pareciam ser mais importantes?…Será?…já não importa.)

Nos últimos cinco anos, estive internada num hospício.
Os enfermeiros e enfermeiras, pareciam simpáticos, mas teimavam sempre em dar-me as mesmas injecções que eu detestava.
O médico, esse conseguiu convencer-me que a melhor cura para mim, seria seguir os seus conselhos e deixar aplicar-me a medicação que, no seu entender, era a única correcta para o meu caso.
Não importava sequer a minha angustia e persistência em resistir. A medicação era a correcta e eu só tinha que a tomar.
E eu aceitei seguir os conselhos deste médico experiente, e deixei-me internar.
Pus em causa a minha sanidade, a minha inteligência, a minha vontade…
E deixei que me aplicassem a terapia.
Ainda que esta terapia, me atrofiasse os movimentos.
E com o passar do tempo, fui-me esquecendo…Esqueci-me de espaços, das pessoas que me ensinaram, de situações que vivi.
Do que sou, de onde vim, do que valho e do que mereço realmente.
E resignei-me ao tratamento e condição.
Até que o médico, foi trabalhar num outro hospital.
E o que veio, não soube aplicar a terapia correctamente.
Acabei por acordar.
E agora, que me encontro desperta deste estado letárgico a que me auto-confinei legitimamente, vem-me à memória que, de facto, ao que nunca realmente me habituei foi a estar num hospício, nem a receber o tratamento que me aplicaram.
Porque nunca realmente precisei dele!
Não sei quanto tempo estive assim. Creio terem sido cinco preciosos anos.
Mas não foi tempo perdido.
Foi tempo aprendido.
Hoje, pergunto a mim própria como consegui sobreviver durante este tempo todo!
E, de repente, constato que estou realmente de parabéns!
Parabéns para mim!
Porque resisti heroica e estoicamente, sem nunca bater em ninguém, sem arrancar os próprios cabelos, sem furar nenhum olho, nem atirar nada ou alguém pela janela mais próxima.
Estou de parabéns!
Porque consegui acordar.
Hoje, sou uma sobrevivente, sentada aqui, a apreciar a minha fatia enorme de bolo.
Na companhia da minha querida amiga, que ao longo de todo este tempo, nunca falhou uma visita.
Obrigada, Rita, por teres estado sempre presente, por acreditares que eu seria capaz de recuperar.
Hoje e aqui, da janela do meu quarto, vejo-me a mim.
Sou uma sobrevivente que vai poder abandonar os destroços pelo seu próprio pé, ainda que com pequenos danos colaterais.
A minha maior lição de vida?!!?
Sim, hoje, finalmente, acho que a aprendi. Enquanto estive a dormir, e aqui, onde ainda estou…
Mas onde não irei ficar por muito mais tempo.

Comentários

The Queen Maid disse…
Ok...mas pensa de do mau também de retira muita coisa boa e também é importante não esquecer essa parte.

Estou muito contente por saires do hospital e finalmente ires passear nos jardins que não te deixavam nem observar.

Mas nunca te esqueças das valiosas lições que uma má estadia traz.
Assim, da proxima vez podes escolher tu um hospital melhor e não ser o hospital a escolher-te a ti.
Unknown disse…
"Vais partir naquela estrada onde um dia chegáste a sorrir..."
Bem vinda ao mundo da liberdade profissional que nos fascina e nos faz crescer e criar algo mais.
Unknown disse…
Pá o gajo aí de cima sou eu o Mariano.

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