A síndrome portuguesa do Chapeleiro Louco

21.08.2007, José Vítor Malheiros

Se alguém pensa que a lentidão é portuguesa, desengane-se. O que é bem português é a pressa, a urgência e a precipitação.
Existe uma tacada no bilhar que é feita com o taco na vertical e que permite imprimir à bola efeitos aparentemente mágicos: o massé. O massé não é isento de riscos (nem para a integridade do taco nem para a do pano da mesa de bilhar) e quando um jogador se arrisca a tentar esta tacada numa competição a assistência sustém a respiração. O massé é o triplo mortal do bilhar.É frequente a tacada ser violenta e dada quase em cheio no meio da bola (ainda que nem sempre tenha de o ser) e acontece que esta fique num primeiro momento estática, sem saber bem o que fazer, para disparar em seguida numa curva que parece desafiar as leis da física e fazer uma carambola que parecia impossível.O massé permite proezas admiráveis, tem sempre um grande efeito e são raros os mestres que o dominam. Os espectadores mais impressionáveis consideram um massé um sinal de perícia e há novatos talentosos que acham de bom tom tentar uma destas tacadas de vez em quando, só para exibir o seu virtuosismo. Os verdadeiros bons jogadores, porém, sabem a verdade: quando um jogador faz uma série de carambolas e, a dada altura, se vê obrigado a fazer um massé... é porque errou a jogada anterior. O massé é uma jogada de recurso, sempre arriscada, e que não deve ser necessária. Pode ser um remendo genial, mas é quase sempre um remendo. Para quem não tenha a mínima ideia de como se joga bilhar, explique-se que há sempre um duplo objectivo em cada jogada: fazer carambola e deixar as bolas em boa posição para fazer a carambola seguinte. Quando se tem de recorrer ao massé significa que não se conseguiu cumprir a segunda parte deste programa.Vem isto não a propósito de bilhar mas da vida de inúmeras empresas que vivem em massés permanentes, sempre encurraladas em desesperadas soluções in extremis, exigindo triplos mortais constantes aos seus trabalhadores, sempre numa situação tão crítica que os projectos têm de se pôr em prática já para a semana em vez de se reflectir neles durante um mês. Se alguém pensa que a lentidão é portuguesa, desengane-se. O que é bem português é a pressa, a urgência e a precipitação. O que é português é fazer já, em cima do joelho e nas costas do envelope, porque estamos tão atrasados como o Chapeleiro Louco e não temos tempo a perder. E ficamos satisfeitíssimos quando "conseguimos fazer". Com qualidade? Com êxito? Bom... não se pode ter tudo.Em Portugal é tudo tão urgente que não há tempo para planear (o planeamento é considerado nos meios tecnocratas, na prática, como uma desculpa para não agir), nem para discutir (a discussão é também considerada nos meios tecnocratas como uma desculpa para não agir, para mais com laivos de esquerdismo, e é substituída com vantagem por focus groups) e muito menos para reflectir (a reflexão é também considerada nos meios tecnocratas como uma desculpa para não agir e é substituída com vantagem por brain stormings de um dia "num hotel").Em Portugal a regra é a excepção e a excepção a regra e os gestores adoram viver neste regime de excepção, de "reestruturação" constante, de urgência permanente, de truques em vez de técnica, de jeitos em vez de procedimentos, de desenrascanços em vez de normas, de empurrões e solavancos em vez de fluidez, porque isso lhes dá a justificação para todos os abusos e a desculpa para todos os fracassos ("É verdade que os resultados ficaram aquém das expectativas, mas pusemos isto de pé num tempo-recorde"). Além de que é mais fácil alinhar datas num calendário do que definir uma estratégia de longo prazo, mobilizar uma equipa ou definir qual é a excelência que se procura. Este clima de "urgência" evita, por outro lado, que se reflicta alguma vez no facto de que a situação crítica em que a empresa se encontra, essa mesma "urgência", é fruto de uma série de jogadas anteriores, igualmente apressadas e igualmente irreflectidas. Por outras palavras: a "solução urgente" de hoje gera inevitavelmente os "problemas urgentes" de amanhã.Todos os Verões (e este não foi excepção) sei de amigos e conhecidos, quadros de empresas, que são obrigados a anular as férias marcadas há meses, a adiá--las, encurtá-las, entremeá--las de reuniões e "projectos", devido a "urgências" na empresa, trabalhos que afinal é preciso entregar mais cedo, "reestruturações" que têm de ser feitas em meia dúzia de dias, transformando num nó de stress um período que deveria ser retemperador. Estas perniciosas "urgências" têm a sua razão de ser, que não se resume à incompetência generalizada das organizações. Elas servem para transmitir aos chefes dos chefes uma falsa ideia de actividade, para mascarar as pequenas tiranias dos capatazes a quem hoje chamamos gestores, para impor soluções sem dar tempo para as discutir e para garantir a impunidade quando chega a hora dos resultados. Tal como o bilharista que falha o massé recebe um aplauso pela ousadia da sua solução impraticável, assim os modernos capatazes vêem os seus prémios subir quando conseguem transmitir a ilusão de agitação nas suas unidades, por pífio que seja o resultado.A situação não revela apenas desrespeito pelos direitos dos trabalhadores (ainda se poderá falar de direitos dos trabalhadores sem ser acusado de "sabotar a economia", para usar uma expressão cara ao tempo de Estaline?), ela revela como muitas empresas realizam a sua "aposta no capital humano": não como a promoção do bem-estar dos seus trabalhadores e das suas capacidades de inovação, mas como a mera exploração sem limites do seu trabalho.

Jornalista
Público 21-08-2007

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