Um presente...do outro lado! (Parte IV) - Confissões

E a mãe contou-lhe tudo.
Contou-lhe o que tinha acontecido uns meses atrás quando ainda tinha alguma possibilidade de lá ir limpar ela própria a campa do pai.
Descreveu a sua peripécia, no embaraço de alguém que passava a vida a criticar a sua própria filha e as experiências “extra-sensoriais” desta, as suas ligações ao “lado de lá”, em que sempre persistia em não acreditar e que, para si, era sempre objecto de escárnio para com a sua própria filha.
Contou-lhe que sabia de todos os comentários que a velha senhora sua vizinha tecia sobre a morte, que sempre soubera disso, e que se por vezes dizia que a filha era parva, o fazia não por mal, mas para que esta desse menor credibilidade ao assunto, pois com a morte e com “outras coisas”não se brinca.
E contou-lhe que também o fazia pois isso tudo era contra as leis de Deus e da igreja, que a filha persistia desde criança em não respeitar.
Disse-lhe, que não obstante os comentários da velha senhora, com quem tinha vivido porta-com-porta mais de cinquenta anos, lhe fazia muita confusão, e até porque era contra as leis de Deus, que a campa desta não tivesse sido minimamente arranjada pela família, que a família se tivesse esquecido da senhora, que estivesse “tudo” ali sob um amontoado de terra, apenas com uma inscrição espetada.
E, naquilo que considerava a sua boa fé, na sua qualidade de Católica convicta, ignorando os comentários que sempre tinha ouvido sobre a morte da boca da mulher ainda viva, decidiu embelezar-lhe a campa com as flores que a senhora sempre gostara: malmequeres.
E foi assim que na última visita ao pai, a mãe muniu-se de jarra e tubo de cola para a fixar, e de um lindo ramo de malmequeres artificiais, “dos bons e caros, não é dessa porcaria dos 300…”como disse, pensando para si que, pelo menos assim, a campa da outrora sua vizinha, deixaria de ter aquele aspecto abandonado.
E com ar de grande pesar, deu inicio a uma narrativa dessa visita, de como tinha limpo a campa do pai dirigindo-se posteriormente à parte sul do talhão, de como tinha procurado a campa da senhora através do número de inscrição, que cuidadosamente levara consigo.
Disse a mãe ter falado em voz alta para a morta, transmitindo-lhe o motivo da sua visita, e que “ia ali por uns malmequeres, apesar de saber que ela não queria flores, pois a campa estava triste e feia”.
Prosseguiu dizendo que se ajoelhou, fez uma “cova” no topo da campa que encheu com a cola e fixou a jarra. Depois, e para que a cola secasse (como se fosse possível colar terra e vidro!!!) e enquanto esperava, rezou umas quantas Ave-Marias e Pais-Nossos por alma da “pobrezinha”, findos os quais tirou do saco o dito ramo dos malmequeres.
Estendeu o braço e colocou-os na jarra, proferindo um descanse em paz…
Mas eis que a jarra, ao receber os malmequeres, “estoirou” em mil pedaços…que se espalharam em seu redor, fazendo saltar o ramo dos malmequeres.
E ela, a mãe, tinha ficado tão aflita que até lhe fez doer o coração. E a única coisa que lhe ocorreu foi fugir dali, deixando tudo espalhado.
E foi o que a mãe fez. Fugiu do cemitério a sete pés.
E terminou esta narrativa à filha dizendo que acreditava nela e nas três horas de ausência desta, mas que, naquele momento, preferia não falar mais no assunto e que iria mandar dizer uma missa, pelo que agradecia que a filha não contasse isto a ninguém.
Ao ouvir isto, ficou ainda mais pensativa.
Levantou-se, beijou a mãe e disse:
- Pronto. Já está tudo então…Agora vou para casa.
E seguiu caminho.

(continua)

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