Um presente...do outro lado! (Parte II)

Achou francamente que estava a ficar maluca.
Estava um dia tão bonito e quente. Começou a limpar a campa e enquanto o fazia ia falando com ele, numa semi-revolta-saudade.
Foi duas vezes buscar água à torneira que estava instalada sob o muro. Sempre tentando ignorar o burburinho, o vento fresco na cara e a voz que desde então não parava de repetir:
- Olha… acende-me uma vela, num murmúrio sussurrado.
Continuou a falar alto com ele. Não havia ninguém, mas mesmo que houvesse estava-se completamente nas tintas. Pensassem o que quisessem, ora!
Chegou a perguntar-lhe se era ele que estava a falar com ela…Em vão. O murmúrio continuava e a voz era bem nítida. Não era ele a falar com ela, não era a voz dele. Era uma voz feminina sussurrada e ela não estava definitivamente a ficar maluca! Nem por sombras!
Olhou de novo para o vulto ao longe e percebeu que a figura da mulher de preto que tinha o lenço na mão continuava sentada na campa dela. Por instantes interrogou-se se ela estaria a ouvir alguma coisa… Queria acreditar que não… Mas a voz continuava a insistir na vela, rodeada pelo burburinho de muitas outras vozes que falavam sem se perceber o que dizia.
Como estava já tudo limpo, abriu a candeia e acendeu a vela, que colocou lá dentro.
- Pronto, já está.
E foi acometida de um arrepio enorme quando a voz se tornou mais nítida e lhe respondeu:
- Não…ali.
- Acende-me uma vela…ali
Passou-se por completo. Medo? Não. Não tinha o menor dos medos, mas estava muito curiosa. Sentou-se na boda da campa já limpa e acendeu um cigarro dizendo:
- Bah…eu sei que faz mal, que não devia fumar e tal, mas estou a ficar nervosa…Sei que morreste disto, sei que não devia… mas olha lá achas que já não passei por tanto? Fazes favor de deixar de brincar e responder-me??? Ès tu?
Deixou cair o cigarro aceso quando a mesma voz respondeu, agora completamente nítida e indiferenciada das restantes que murmuravam. Era bastante claro, desta vez e de facto não era produto da sua imaginação.
Lembrou-se da vizinha de cima que tinha falecido um mês e meio depois dele. Recordou-a e das “maldades” que lhe fazia quando era pequena e ela a convidava para ir lá acasa… Sim, fazia-lhe tantas maldades. Uma vez, até despejou o pacote inteirinho do OMO para dentro das azeitonas…Mas ela não se importava e achava-a tão engraçada que teimava em convidá-la a subir à sua casa... Lembrava-se tão bem agora…E dos traços da cara dela.
E sabia que ela tinha sido sepultada naquele talhão, mas não sabia onde…E lembrou-se das palavras que ela dizia [quando eu morrer não me ponham flores. O corpo é um empréstimo e depois de morto não serve para nada. É coisa velha e feia. O que emana dele é lindo. Por isso não me ponham flores e não adorem o meu corpo velho porque quando ele não servir, e já não prestar, a terra cuidará dele sozinha] Sim…estas foram sempre as palavras dela. E estava-lhe sempre a dizer que ela um dia iria perceber isto porque era uma menina muito inteligente e teria essa capacidade, que até teria muitas mais, se tentasse ver além das coisas. E ela só tinha três anos nessa altura, mas recordava-se das palavras dela. Amãe até dizia, quando ela lhe contava, que a senhora era doida e tinha pavor de envelhecer e que era para ela não ligar que isso eram coisas de velha...
- D. Encarnação? D. Encarnação? - Perguntou ela, ao mesmo tempo que pensava para si que não estava a ter o comportamento de uma pessoa normal a ouvir vozes do nada e a falar para o nada. E que raio de nome a mulher havia de ter. Sempre a chamara assim. D. Encarnação.
Escassos segundos e só o murmúrio.
E do nada a voz:
- Sim…acende-me uma vela, ali….
Levantou-se de repente, lívida e tão gelada que não conseguir ter medo. Apenas estupefacção. Já tinha passado por muita coisa, mas nunca por nada tão claro, tão evidente! Enfiou tudo no saco plástico e começo a percorrer as fileiras de campas, à procura dela.
Nem se chegou a despedir dele.
E a voz continuava a falar, a pedir a vela e ela ia seguindo a voz como uma espécie de instrução, sempre dizendo alto: “com licença, mil perdões, desculpem o incómodo” pois fazia-lhe uma certa confusão ter que passar e pisar aquelas campas todas…
E ia perguntando : - Ali….Ali onde? Aqui?
E o vento continuava a soprar sob os raios de sol quente, fazendo mexer as árvores. Olhou mais para cima, para o talhão que se via por cima do muro e onde também haviam árvores… que estavam sossegadas! As árvores lá ao fundo não se mexiam!
Sentiu de novo um arrepio gelado.
[continua…]

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