Um presente...do outro lado!

A mãe, triste por as suas pernas não poderem andar como outrora, pediu-lhe para ir lá. Ela já fazia intenção de ir lá – já lá não ia há bastante tempo e isso fazia-a sentir-se mal. Aliás vinha a pensar nisso nos últimos dias. Mas, e de qualquer forma, a mãe tomou a inicitiva. Só tinha que varrer e limpar a campa, mudar as velas. Sabia que não valia a pena pedir-lhe qualquer outro tipo de coisa. Nem orações. Era pagã, de alma e coração. Iria falar com ele sim, mas à sua maneira, embora ele não o merecesse. A única maneira possível no seu coração.
Munida de balde, detergente, panos e vassoura, começou a sua marcha. Não antes de a mãe vir à janela chamá-la. Voltou atrás e perguntou:
- O que foi?
- Esqueceste-te das velas… Olha, leva uma a mais, não vá o Diabo tecê-las… (frase própria de quem é católico, bahhhhhh!)
- Está bem, levo.
Agarrou nos dois cotos e colocou-os no saco, continuando a sua marcha, rua abaixo.
Tinha 15 minutos de caminho pela frente, sempre a direito e fácil, mas cansativo sob o sol pós-almoço. Estávamos em meados de Março e já o sol queimava. Avizinhava-se um verão quentinho, e sorriu para si mesma com a ideia da praia.
Entrou no portão principal sem hesitações e sem acalmar a passada. Com excepção dos guardas, viam-se duas ou três pessoas por ali. Disse um “boa tarde” entre dentes e começou a descer a ladeira, sempre ao mesmo passo.
Estava calor, mas subitamente a brisa suave transformou-se em pequeno vento. Como o caminho que seguia era cada vez virado a Tejo, achou normal a brisa ser mais forte. Não se via ninguém na ladeira, mas, à medida que descia, um burburinho intensificava-se, como se houvesse perto muita gente a rezar baixinho. E à medida que descia, o barulhinho tornava-se mais forte e claro. Eram vozes, várias, numa espécie de murmúrio e de lamento.
Desceu e chegou ao talhão principal. O som das vozes era agora muito mais nítido. Como se se tratassem de várias pessoas ali mesmo perto de si.
Mas nada.
Apenas centenas de campas alinhadinhas ao sol, com os crucifixos e as flores a brilharem sob os raios quentes. E ninguém visível a não ser a mulher lá do fundo.
Lá bem longe, avistava-se alguém de preto a enxugar os olhos. Uma só pessoa por ali, e um burburinho de quase cem a murmurar!
Que raio! Isto hoje não está normal, pensou e estranhou.
Mas não teve medo.
Aproximou-se do seu objectivo, passado pelas campas em fila indiana, dizendo baixinho cada vez que o seu pé tocava uma ponta do mármore ou da terra:
- Com licença, peço desculpa… peço imença desculpa, com licença...
Avistou a placa com o nome. Tinha chegado.
E por detrás, o vento soprava mais forte e frio e o burburinho chegava até si, mais nítido, destacando-se já diversas vozes femininas que se lamentavam, como que num choro falado. Mas, ninguém por ali. E no entanto, era como se o talhão estivesse atulhado de gente…
Não estava a conseguir ficar alheia a isto, mas voltou-se de novo para a placa com o nome e disse alto:
- Olá pai. Hoje sou eu que estou aqui.
E do burburinho elevou-se uma voz e ela percebeu nitidamente:
- Olha…
- Olha…
- Acende-me uma vela…
[continua]

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